Um naufrágio, imigrantes e o Museu de Arte Sacra

Henrique Trindade
4 min readMay 11, 2020

Em junho do ano passado estive em Gênova para participar de um simpósio. Da janela do meu hotel eu tinha uma vista privilegiada da Piazza Acquaverde, bem ao lado da estação de trem. A principal atração da praça é um enorme monumento dedicado a Cristóvão Colombo, inaugurado em 1862, e certamente admirado por muitos dos milhares de imigrantes que partiam do porto da cidade para “fazer a América”, especialmente a partir do final do século XIX.

Porém, em agosto de 1906, um rapaz, funcionário da Companhia de Navegação Italiana, surgiu na praça, parou em frente à estátua de Colombo e, aos gritos, começou a amaldiçoa-lo por ter descoberto a América. O homem não era louco, tampouco estava embriagado. Essa foi a maneira dele exteriorizar seu desespero após receber a notícia de que seu irmão, que há poucos dias embarcara dali em direção à América do Sul, falecera em uma das maiores tragédias transatlânticas do começo do século XX: o naufrágio do vapor Sírio.

O acidente com o Titanic (1912) foi algo tão marcante que, de certa forma, ofuscou outras histórias semelhantes. Frequentemente menciono o desastre com o vapor Principessa Mafalda (1927), que afundou na costa da Bahia, em que pereceram quase 400 pessoas (aliás, o Papa Francisco tem relação com esse naufrágio. Assine minha newsletter para saber mais sobre essa história: http://tinyletter.com/henriquetrindade), mas imagino que poucos conheçam a catástrofe do Sírio, ocorrida no dia 04 de agosto de 1906.

A notícia do naufrágio repercutiu em diversos países. O navio era italiano e a maioria dos passageiros eram dessa nacionalidade; o acidente ocorreu no litoral espanhol, próximo a Cartagena, e fez com que o rei da Espanha, Afonso XIII, enviasse ajuda aos náufragos; muitos dos imigrantes gregos, sírios e libaneses, que tinham como destino o Brasil, faleceram; e, além disso, há o fato de que o arcebispo de São Paulo, Monsenhor José Camargo de Barros, e o arcebispo do Pará, Monsenhor Homem de Melo, estavam presentes na embarcação. Este se salvou, aquele não teve a mesma sorte.

Os jornais trazem notícias angustiadas, ora citando que o arcebispo de São Paulo havia falecido, ora negando tal fato. Muitas crianças e mulheres fizeram parte das vítimas. Navios mercantes, que estavam próximos do local, resgataram centenas de pessoas, um heroico pescador, com seu pequeno bote, foi ao encontro dos náufragos e conseguiu salvar doze deles. Um dos passageiros perdeu a esposa e os seis filhos; a cantora e atriz espanhola Lola Martinez, que iria fazer uma turnê pela Argentina, pereceu; os abrigos improvisados em Cartagena se encheram de órfãos e as autoridades da cidade temiam que os cadáveres que chegavam às praias pudessem levar doenças. Durante o naufrágio o pânico se apoderou do navio, passageiros brigaram a punhaladas pela posse dos escassos coletes salva-vidas. Segundo algumas testemunhas o arcebispo de São Paulo faleceu enquanto abençoava às vítimas que se jogavam no mar, em razão da agressão de um tripulante (uma outra notícia cita um passageiro argentino) que lhe tirou o salva-vidas.

Autor: Benedito Calixto. Naufrágio do Sírio, 1907. Óleo sobre tela, 160 x 220 cm. Acervo Museu de Arte Sacra.

Muitos dos náufragos resolveram seguir viagem. Aguardaram em Cartagena, La Unión, Alicante e Torre Pacheco pelas novas embarcações, vapores Oravia, Ravenna e Italia, que atracaram com algumas das vítimas nos portos do Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires. Enquanto na Itália parentes e amigos das vítimas, em busca de notícias, se aglomeravam em frente ao escritório da Navigazione Generale Italiana e vociferavam contra Cristóvão Colombo, na Espanha os pescadores que ajudaram no resgate eram homenageados e o tenor Maristany, um dos sobreviventes, foi designado para cantar nas exéquias.

As explicações dadas para a tragédia nos mostram alguns aspectos interessantes das viagens transatlânticas no início do século XX. Importante frisar que não há um consenso sobre o assunto, porém, algumas das razões citadas são comuns para aquele contexto histórico:

1. Superlotação do navio: Não se sabe ao certo quantos passageiros estavam a bordo, algumas notícias dão conta de que existiam 1.700 pessoas, embora o navio tivesse capacidade para 1.300 (cerca de 500 óbitos).

2. O navio se chocou com um arrecife. Alguns disseram que o comandante, para obter mais lucro, queria embarcar indocumentados. Por esse motivo se aproximou perigosamente do litoral.

3. O vapor estava em uma velocidade acima do normal. Existia, de fato, uma certa competição entre navios e seus comandantes para descobrir quem fazia o trajeto Europa-América do Sul mais rápido (uma viagem por essa rota durava cerca de três semanas).

Um ano depois do naufrágio (1907) o pintor Benedito Calixto narrou, em uma de suas telas, a história do Sírio (foto). A obra faz parte do acervo do Museu de Arte Sacra (São Paulo) e mostra, em destaque, o arcebispo de São Paulo abençoando as pessoas em meio ao pânico que se apoderava do navio. Fica como dica de visita para depois da quarentena.

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Henrique Trindade

Historiador. Pesquisador do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.