O Brasão de Família

Henrique Trindade
7 min readOct 1, 2020

O mundo das pesquisas de registros e histórias de antepassados no Brasil vira e mexe nos reserva a figura do brasão de família ou brasão do sobrenome.

Você já pesquisou o seu brasão? Você não sabia disso e agora quer pesquisar?

Eu confesso. Já pesquisei há muitos anos, quando ainda nem imaginava que seria historiador, muito menos que trabalharia com genealogia.

Quem se aventura nesse campo recebe várias responsabilidades ingratas. Uma delas é frustrar determinadas descobertas. E é aí que se encontra o tal brasão pesquisado no Google.

(Quer ler um texto mais objetivo? Sugiro o artigo “Brasões e Charlatões, Uma Estreita Relação”, do Daniel Taddone. Está na página dele no Facebook e foi publicado no dia 28.06.2018).

Para tentar entender melhor essa história precisamos voltar para a (tão mal conhecida) Idade Média. Os brasões surgem na Europa Ocidental (inicialmente entre o Loire e o Meuse, na França; no sul da Inglaterra, Escócia, Vale do Reno e norte da Itália) em meados do século XII, mais precisamente entre os anos 1130 e 1170.

É curioso, mas não uma coincidência, que os sobrenomes ou nomes de família, como conhecemos hoje, também despontem nessa mesma época. Os brasões e os sobrenomes possuem a mesma função, saber com quem se estava lidando. No caso dos sobrenomes, no campo da vida social, ou seja, em uma cidade com dezenas de José(s), se diferenciava um do outro dizendo que um José era filho de João e outro filho de Pedro, um José era carpinteiro, o outro era ferreiro, um José era alto, o outro baixo e por aí vai. No caso dos brasões essa diferenciação ocorre, a princípio, nos campos de batalha e nos torneios.

Você já deve ter visto uma armadura medieval. Imagine dois exércitos, cada um deles com centenas de cavaleiros utilizando armaduras semelhantes. Isso seria um problema grave durante os combates. A evolução dos equipamentos militares tornou necessária a invenção de um sistema que fizesse as pessoas se reconhecerem durante as batalhas. Esses signos de identidade são os emblemas coloridos nos escudos, ou seja, o que entendemos por brasões.

(Em francês há um vocabulário mais específico. Armoiries são os emblemas coloridos submetidos a uma representação regrada e que tem por função atestar a identidade de uma pessoa. O blason é o conjunto de figuras, cores e regras que regem a composição das armoiries, ou seja, é a gramática do sistema. E a héraldique/heráldica é a ciência que tem por objeto o estudo das armoiries. De todo modo, para simplificar vou usar somente a palavra brasão).

Nascidos nos campos de batalha e nos torneios, os brasões rapidamente se expandem pela Europa (e não só geograficamente). Já na segunda metade do século XII ele é adotado por pessoas que não estavam envolvidas em batalhas: mulheres, prelados, clero, depois plebeus, burgueses e até mesmo camponeses, em algumas regiões (Normandia). Posteriormente os brasões passam a identificar cidades, corporações de profissões e comunidades religiosas.

Sobre os brasões em si vale a pena fazer algumas considerações:

Podem ter diferentes formas, porém o mais comum é em formato de escudo, em razão de sua origem.

O repertório de figuras em heráldica é extremamente aberto. Na Idade Média cerca de 60 eram mais utilizadas (mais ou menos 1/3 de animais, 1/3 vegetais, 1/3 de formas geométricas), já no século XVII/XVIII esse número sobe para mais ou menos 300 e nos dias atuais praticamente tudo pode se tornar uma figura heráldica.

Em contrapartida, o repertório de cores é fechado. Em heráldica existem seis cores, divididas em dois grupos:

1º grupo: amarelo e branco.

2º grupo: vermelho, azul, preto e verde.

Cores do mesmo grupo não podem se justapor ou sobrepor. Suponhamos que um brasão tenha uma cruz e dentro dela três pássaros. Se o fundo do brasão for vermelho, a cruz só pode ser amarela ou branca e os pássaros só podem estar na cor vermelha, azul, preta e verde (menos de 1% dos brasões medievais conhecidos são exceções à essa regra).

Em francês as cores heráldicas possuem nomes específicos:

Rouge (vermelho) se chama gueules; Blanc (branco) se chama l’argent; Jaune (amarelo) se chama or; Noir (preto) se chama sable; Bleu (azul) se chama azur; e Vert (verde) se chama sinople.

No que diz respeito aos brasões medievais registrados, para uma boa parte deles desconhecemos suas cores. De qualquer forma, para aqueles em que se sabe as cores, há uma predominância de branco e vermelho (na época, a cor contrária ao branco era o vermelho), seguido pelo amarelo. A cor menos utilizada era o verde.

Voltemos ao uso dos brasões. Estes eram constituídos, a princípio, quando uma mesma pessoa, por toda sua vida ou por um longo tempo dela, fez uso das mesmas figuras e das mesmas cores. Eram de livre adoção e uso (como citei, há registros de camponeses com brasões inclusive), porém a maior parte da população europeia nunca possuiu um brasão. Comparando com o nosso cotidiano: todo mundo pode ter um cartão de visitas, mas todo mundo tem um cartão de visitas?

As pessoas que não eram nobres, de maneira geral possuíam preocupações muito mais urgentes e necessárias do que ter ou não ter um brasão. E isso ao longo de toda história (por que você faria um cartão de visitas se você não precisa de um?). Aliás, além de ser símbolos de identidade, os brasões se tornaram marcas de propriedade de bens móveis e imóveis. Estavam presentes em cofres, armas, joias, livros, roupas e nas igrejas, uma maneira de alguém deixar registrada uma doação para a “casa de Deus”. As igrejas europeias são museus de brasões, ainda que muita coisa tenha sido destruída durante a Revolução Francesa. Agora, um camponês não tinha condições de fazer doações generosas para a Igreja, não podia se dar ao luxo de gastar dinheiro estampando emblemas em cofres, armas, livros e roupas (muitas vezes ele nem tinha isso). Naturalmente, os brasões não eram comuns entre o campesinato (os que existiram, são exceções bem exceções). Importante recordar que a maioria das pessoas que imigraram para o Brasil eram camponeses, pequenos arrendatários, pequenos proprietários e comerciantes.

Outro ponto essencial para reflexão. Um sobrenome pode ter várias origens. Famílias totalmente diferentes, com histórias que nunca se cruzaram podem carregar o mesmo sobrenome. Ter o sobrenome Cabral não significa que alguém é descendente de Pedro Álvares Cabral. Por isso (e por outras razões também) que fazer pesquisas a partir apenas de sobrenomes não é algo eficiente. É necessário construir uma árvore genealógica com base em fontes. Bom, pensando nisso fica fácil imaginar que não faz muito sentido a existência de um brasão de sobrenome. Se um sobrenome pode possuir diversas origens, como pode existir um brasão único para determinado sobrenome? A conta não fecha.

Isso significa que não existe um brasão de família? Claro que não. Eles existem, mas evidentemente a pesquisa precisa ser feita muito cuidadosamente. O brasão que aparece nas imagens está relacionado à família suíça Helfenstein. Se trata de um “brasão que fala” ou “brasão falante”. Em alemão, Helfen é uma palavra que se aproxima etimologicamente da palavra elefante e Stein significa pedra. Portanto, o brasão dessa família é um elefante sobre uma pedra. Na primeira imagem vemos o brasão (sem as cores) na pedra tumular de Adelheid von Helfenstein (1356).

Alguns imigrantes com sobrenome Helfenstein vieram para o Brasil. Se instalaram em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São algumas famílias com origens diferentes. Eles podem dizer que esse brasão pertence à família deles? A princípio, não. É preciso realizar pesquisas e verificar se eles de fato são parentes ou não de algum Helfenstein que, oficialmente, utilizava esse brasão desde o século XIV.

Fica para um outro texto a questão das cores e seus respectivos significados, que aliás mudam ao longo da história. Os romanos não gostavam do azul, hoje os italianos preferem o azul e a cor é um dos símbolos do país. Isso quer dizer que as cores de um brasão não eram escolhidas aleatoriamente.

Para concluir:

- Desconfiem dos “brasões de sobrenome” que aparecem em qualquer pesquisa na Internet.

- Se você quer um brasão com seu sobrenome para enfeite ou algo semelhante, não vejo problema nenhum em utilizar esses fáceis de achar (são bonitos e é por isso que as pessoas gostam). Só precisa ter em mente que não é o “verdadeiro” brasão da família.

- Existem diversas formas de contar uma história. Você pode escrever uma história, narrar uma história, desenhar uma história, cantar uma história, etc. Se você quer ter um brasão, por que não tenta criar um? Pensando no formato, nas figuras que colocará, nas cores que usará e seus significados. Como você contaria a história da sua família (de um ramo da sua família) inspirado em um brasão? Esse sim você poderá dizer que é o seu brasão, seu olhar criativo para a história dos seus antepassados.

(Esse texto tem como base uma das aulas do curso “Iniciação à história da arte”, ministrado pelo historiador Michel Pastoureau, no Museu do Louvre, em 2012).

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Henrique Trindade

Historiador. Pesquisador do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.